A ESCRITA FEMINISTA DE SAADAT HASAN MANTO
ALM No.70, November 2024
ESSAYS
Saadat Hasan Manto, um autor à frente de seu tempo, trouxe em suas histórias sobre a divisão da Índia a força da contestação política e social, sendo por isso muitas vezes considerado por seus contemporâneos um “inconsequente rebelde anarquista”. Posteriormente foi chamado de “feminista” por não se esquivar de usar uma linguagem que outros descreveriam como vulgar. Escritor e obra eram polêmicos por muitas razões, principalmente pelo tratamento incomum de temas controversos, às vezes incompreendidos, por sua intransigente defesa da liberdade das mulheres, impensável para um autor em sua época e região. Ele foi acusado de obscenidade e enfrentou vários processos judiciais no Paquistão e na Índia por sua escrita e posicionamentos. Saadat Hasan Manto (1912-1955) nasceu na Índia e se mudou para o Paquistão logo após a criação do novo Estado-nação. Com uma vasta obra literária, especialmente como um dos maiores contistas da região em que viveu, foi considerado demasiado controverso para sua época, sendo levado a tribunal por um total de seis vezes nos dois países em que viveu, Índia e Paquistão. Apesar de perseguido e de ter um grupo de opositores a seu redor, Manto escreveu com a intenção de discutir questões sociais e desafiar o que ele percebia como fatores desfavoráveis à prática de um humanismo radical e contra a própria humanidade. A Partição da Índia após sua independência da Grã-Bretanha resultou na criação, em agosto de 1947, de dois Estados soberanos: Índia e Paquistão.
Este foi um período de frenesi e paixão comunitária, quando as pessoas esqueceram o humanismo, excluíram as mulheres e criaram um sistema, no qual elas eram vistas fora de qualquer grupo religioso, o que as tornava quase sub-humanas.
Saadat Hasan Manto era feminista. Tão feminista quanto um homem indiano da década de 1940 poderia ser. Ele usou suas histórias para erguer um espelho diante da hipocrisia da sociedade. Escreveu sobre prostitutas, cafetões ou criminosos porque queria impressionar seus leitores, reafirmando a humanidade dessas pessoas consideradas inferiores e de “má reputação”. Para Manto, pessoas muito mais humanas do que aquelas que ocultavam suas falhas sob um véu espesso de hipocrisia. As profissionais do sexo de Manto eram mulheres humildes, que se vendiam por qualquer quantia. Havia diferentes “exemplares” para os diferentes grupos sociais; aos que eram abastados, as que preenchiam a lacuna erótica da mulher casada e apenas reprodutora; para aqueles mais reservados, as que se colocavam em um lugar de subalternidade. Poucos denunciavam o fenômeno comum da cooptação das mulheres para a manutenção do patriarcado como o fez Manto. Tomemos por exemplo o conto “A prole” (Offspring/Aulaad), uma história angustiante sobre a dona de casa Zubeida, na qual Manto explora a violência psicossocial a ela infligida. No conto, um pacto social anti-feminino, com a participação e anuência das próprias vítimas, as mulheres. A personagem principal, é submetida a uma autopunição e cumplicidade com seus agressores.
Zubeida é uma mulher casada, sem filhos e infértil. Embora seu marido seja um homem dedicado e generoso, o questionamento de sua mãe e a pressão social imaginada alimentam a crença de que não conseguiu cumprir seu papel como mulher e isso lança uma sombra sobre a vida de Zubeida. A história também revela como as mulheres são cooptadas como os piores agentes do patriarcado — um caso de vítimas que se tornam perpetradores. Na época de Manto, as instituições religiosas, sociais e políticas, os costumes e a lei, o discurso oficial e popular convergiram para propagar um sistema de crença de que os chamados homens íntegros, decentes e respeitáveis devem considerar as esposas estritamente como reprodutoras. Para obter prazer sexual e erótico, foram encorajados a procurar mulheres em outro lugar, longe de casa. Nas famílias indianas mais ricas, era obrigatório os jovens visitarem cortesãs para aprender “etiqueta”, um eufemismo para prazeres eróticos.[1]
Manto sofreu as consequências por ter sido dono de um texto voraz e destemido, que deixou uma marca indelével da beleza, ousadia e coragem. No seu conto intitulado “Mozelle”, nome da personagem principal, traz uma garota judia com sede de liberdade e independência, atitudes incomuns para os padrões da sociedade indiana de seu tempo. A inspiração de Manto para o conto veio de suas experiências na metrópole indiana Bombaim, onde entrou em contato com pessoas de diversas culturas e religiões nos contextos pessoal e profissional. Como em várias de suas histórias, Mozelle, a protagonista é também uma de suas mulheres/personagens libertárias e com espírito de justiça.
Manto viveu em Bombaim e carregou essas memórias e experiências em seu coração, mesmo depois de migrar para o Paquistão após a Partição. As mulheres nas histórias de Manto são ousadas e justas, inspiradas em sua passagem pela cidade. “Mozelle” é uma história em que a heroína homônima é uma garota judia vívida, independente e ousada que vive em Bombaim. A história tem como pano de fundo a violência comunitária entre hindus, muçulmanos e sikhs. Um jovem sikh chamado Trilochan Singh se apaixona por Mozelle, mas ela recusa seus avanços por considerá-lo demasiado religioso e conservador. A personagem de Mozelle é bastante complexa de analisar, e permanece um mistério em toda a história.[2]
Maryam Mansoor escreve sobre mulheres “escandalosas” em Manto e sobre a construção de personagens femininas fortes, com autonomia e antipatriarcais. Para ela, Manto era um escritor que não se abstinha, por conta de tabus da sua época, de abordar a sexualidade das mulheres descrevendo partes íntimas de seu corpo, o oposto do que era habitual em escritores contemporâneos, que as tratavam como objetos assexuados e reprimidos. “Manto é conhecido por ter retratado as mulheres do mesmo modo como o fazia com os homens, sem criar distinções em moralidade ou fazer julgamentos sobre elas, apesar de seus papéis”.[3] As mulheres em Manto eram diversas, individualizadas e por ele defendidas contra a misoginia vigente em nome da honra comunitária e do nacionalismo. “A maioria das tentativas de Manto de humanizar suas personagens femininas e apresentá-las em diversos papéis, retratando suas ações — raiva, independência e empatia —, reflete seu interesse pelos detalhes e a sutileza de sua escrita. O trabalho inovador de Manto e seu interesse em tópicos tabus retratando o poder e a atitude das mulheres, classificam-no como um autor de literatura feminista, que deixou sua marca na Índia e no Paquistão”.[4]
Manto nunca assumiu uma posição moralista em suas histórias (…) Ao questionar a própria ideia de arcabouço moral estabelecido pela sociedade, reconheceu o arcabouço institucional responsável não apenas por expor as ideias de moralidade, mas também por utilizá-la como meio de perpetuar a misoginia, da qual até mesmo os personagens masculinos de suas histórias são vítimas. Suas personagens femininas permanecem assertivas, realizando seu desejo sexual e questionando o controle corporal a que foram submetidas. As mulheres nas histórias de Manto foram o resultado de uma imaginação onde afirmariam o seu ser, permaneceriam sem medo e reivindicariam espaços que são delas por direito – espaços aos quais pertencem. Ele reconhece a opressão sistêmica das mulheres através das instituições, razão pela qual vê tanto a dona de casa como a prostituta como vítimas da misoginia institucionalizada e as apresenta sem inserir um código moral de conduta. Ao mesmo tempo, ele também olha para o vazio emocional que as envolveu. Suas personagens femininas permanecem assertivas, exercendo sua sexualidade e questionando o controle corporal a que foram submetidas. Seus escritos retratam lindamente a poética da tristeza. Tristeza que tem conotações femininas. Tristeza que simplesmente não permanece em seus olhos, mas é canalizada através de sua raiva, e dentro dessa raiva há uma infinidade de perguntas que desafiam todos os grilhões que a cercam. Tristeza que é pessoal na vida dessas personagens femininas, mas extremamente política porque decorre do sistema patriarcal. Os personagens masculinos de Manto, por outro lado, são frequentemente vistos expondo seus lados vulneráveis, delicados e sensíveis no contexto de algo tão duro quanto a Partição, que os empurra constantemente a aderir à masculinidade tóxica. Manto também usou suas personagens femininas para sensibilizar seus leitores, tanto para a condição quanto para o condicionamento humano. Suas histórias não apenas revelaram uma maneira totalmente diferente de olhar para a condição feminina, mas também havia uma feminilidade inata em seus escritos, que exigia ternura para com a brutalidade e com o pathos da Partição além do cinismo e da indiferença associados a ideias de união e fé quando, na verdade, não havia nada além de derramamento de sangue.[5]
Nas histórias de Manto as mulheres foram descritas como vítimas e vitimizadas, muitas vezes denegridas como um mero território a ser conquistado. Como um homem libertário, demonstrou, em sua escrita, a opressão das mulheres numa sociedade patriarcal. As “mulheres de Manto” eram diversas nas suas adversidades; livres de um padrão social único; marginalizadas, sofriam e enfrentavam dificuldades reais para se manterem vivas mas também podiam ser fortes, complexas, ultrapassar seus próprios limites e libertar-se de tabus que lhes eram socialmente impostos.[6]
Apesar do reconhecimento e demanda editorial que tinham suas histórias, o que era evidenciado quando vários editores solicitavam que escrevesse para suas publicações, via muitas delas sendo rejeitadas. Na Índia de Manto, havia um pacto machista e patriarcal compartilhado por homens e mulheres em diferentes setores da sociedade com o aval das autoridades e das famílias a fim de preservar o status quo, sem se preocupar nem com a garantia de direitos de forma plural ou a efetivação do exercício da cidadania, nem com a promoção de igualdade de gêneros. Uma sociedade na qual a mulher era segregada, subvalorizada e submetida a um acordo para negar sua humanização e para aceitar passivamente um lugar de subalternidade. Mulheres respeitadas e obedientes, violência sexual, privilégio de classe social, hipocrisia religiosa e, na presença dos invasores britânicos em seu período colonial, políticas colonialistas/nacionalistas que visavam, fundamentalmente, controle e exploração. Nesse quadro social era previsível a oposição ferrenha que seria imposta ao texto feminino e feminista de Manto.
Após um período de estudo na Universidade Muçulmana de Aligarth, Manto se muda em 1936 para Bombaim, onde trabalhou como editor da revista de cinema Musawwir (Painter), época em que também escreveu roteiros para cinema. Tinha 22 anos quando chegou a Bombaim e já revelava, na escrita, indignação contra os maus tratos praticados contra mulheres marginalizadas, principalmente prostitutas. Inimaginável um homem naquela época e contexto se preocupar com direitos das mulheres, naturalmente tidas como a eles inferiores. Perguntava-se por que somente aos homens era dado o direito de ser livre. Hoje, uma atitude que pode soar óbvia mas naquele momento da história se configurava como revolucionária, e provocava o rechaço do sistema de poder. Mulheres deveriam se submeter a um homem/proprietário/mentor e serem punidas e até mesmo excluídas do convívio social e familiar caso não alinhadas às rígidas normas e a preceitos religiosos e sociais vigentes. Delas era esperada submissão a qualquer figura masculina e de autoridade, fosse irmão, pai, avô, vizinho, imã ou guru e principalmente ao marido. Um conflito cultural indo-britânico sobre o papel sexual feminino teve amplo espectro e perdurou por todo o período colonial com influências até os dias atuais no subcontinente. Colonialismo e nacionalismo indiano predominante estavam envolvidos em projetos patriarcais distintos, mas interrelacionados.
Uma escrita a favor da humanização da mulher nessa realidade e contexto social, sempre tão adversos era sua fortaleza. Isso o fez merecer o título de “autor de escritos feministas” ou por que não dizer: “um escritor feminista”. O conteúdo feminino do seu texto, tendo como referência o sofrimento e a violação das mulheres como sua grande preocupação, foi único na sua época. Manto retratou experiências de mulheres, não só mas especialmente, durante o período de convulsão política no subcontinente, apresentando o silêncio das mulheres marginalizadas como fonte para uma visão profunda das estruturas patriarcais da sociedade, além de expor os meios para questionar gênero e sexualidade juntamente com os dogmas da cultura racial, da etnia e da religião. A violência e a vitimização que as mulheres tiveram de suportar, quando da Partição/divisão do subcontinente, foram postas à prova em grande parte de sua obra.
[1] Rehman, N. Inroduction. (2022). In: Saadat Hasan Manto: The Collected Stories of Saadat Hasan Manto, p. 29.
[2] Mishra, R. Defying Gender Roles: Manto’s “Mozelle” in Our Times. Disponível em: < https://cafedissensus.com/ 2022/08/22/defying-gender-roles-mantos-mozelle-in-our-times/>. Acesso em: ago. 23.
[3] Mansoor, M. Saadat Hasan Manto And His ‘Scandalous’ Women. Disponível em: https://feminisminindia.com/2017/05/03/portrayal-women-manto-work/. Acesso em: jan. 2023.
[4] idem.
[5] Mishra, T. Manto And His Revolutionary Writing: Thanda Gosht Review. Disponível em: <sangue.>. Acesso em: jun. 2024.
[6] Compare: Kahn, n. Victimization of Women in the Writings of Saadat Hasan Manto. The Creative Launcher. Vol. III, Issue II (June- 2018). Disponível em: < https://www.redalyc.org/pdf/7038/703876868007.pdf>. Acesso em: jun. 2024.
Antonio C. R. Tupinambá: Professor Doctor for Organizational and Work Psychology at the Ceará Federal University – Brazil. PhD in Work Psychology from the University Giessen – Germany